Texto da Rachel Soihet. Abração, povo!
2 => RELAÇÃO ENTRE AS AUTORIDADES DO SAMBA E
O ESTADO NOVO (A Subversão pelo Riso, Texto 8)
A organização das
Escolas de Samba no início do século passado é o mais significativo exemplo de
como manifestações de cunho popular conquistaram o seu espaço, sobrepondo-se às
determinações dos estratos elitistas duma sociedade a partir da negociação com
o Estado e suas vertentes sociais. Diferentes versões historiográficas(4)
induzem ao raciocínio de que esta organização só acontecera por conta de um ‘beneplácito’
das esferas superiores, uma ‘tolerância’ que trocava vantagens (para os
sambistas) por votos (para o poder). Acompanhando, porém, os estudos da historiadora Rachel
Soihet, percebemos que os segmentos populares que por tanto tempo
estiveram condenados à segregação, garantiram, por meio de sua cultura, a
legitimação de uma identidade própria, promovendo sua participação na vida pública
da cidade.
Todos os
esforços para estigmatizar a cultura e os valores populares desde o início da
Primeira República por parte do segmento social dominante foram inúteis; os
populares engendraram as mais diversas formas de resistência para fazer frente à
opressão e à intolerância. E não só resistiram como também se difundiram e se entrelaçaram
com a cultura dominante, dando lugar à circularidade cultural.
Mas, até que
ocorresse tal circularidade, os expedientes para a resistência contra a intolerância
eram diversos. Uma concentração maior de população pobre nos morros e nas áreas
suburbanas em fins da década de 20 encorpara o processo de predomínio da
cultura popular no Carnaval, consolidado com o advento das Escolas de Samba,
nesta mesma década. Desta população é que vieram os componentes das agremiações.
Pessoas que trabalhavam como fiandeiras, tecelões, carpinteiros, empalhadores,
lustradores, pintores e pedreiros. Haviam também, os “malandros”, pessoas que não
se vinculavam formalmente ao mercado de trabalho. Afinal, a música e a composição
não eram considerados como trabalho, e ainda atraía a desconfiança policial.
Algumas residências
dos componentes tornaram-se pontos de encontro por qualquer motivação artística
ou religiosa: manifestações religiosas e profanas se associavam constantemente.
Muitos desses ‘festeiros’ eram líderes de cultos afro-brasileiros. O próprio
local dos ensaios chamava-se terreiro, termo idêntico ao das cerimônias de candomblé.
Monarco, da Velha Guarda da Portela,
lembrava da crença na proteção dada ao samba por esse culto, e o fato de ambos
serem vítimas da repressão policial.
A ascensão de
Getúlio Vargas ao poder (1930) significa uma quebra no poder das oligarquias
cafeeiras no país e, no Distrito Federal, o rompimento com um modelo de civilidade
burguesa, de discursos ufanistas mas mentalidades europeizantes, onde
manifestações de cunho popular eram tachadas como barbarismo e atraso. Vargas,
dissidente das elites após derrota em pleito e gaúcho por substância num Rio de
Janeiro desconhecido, valera-se da música popular e das agremiações
carnavalescas como veículo para a integração dos populares ao seu projeto de construção
da nacionalidade. Paralelamente, toma vulto o esforço de líderes populares para
afirmar sua participação no sistema, garantindo a presença reconhecida de suas
manifestações nas ruas da cidade. Paulo da Portela(5)
ilustra essa tendência, preocupando-se em desfazer a imagem de marginal do
sambista e vislumbrando a possibilidade em dar a essa atividade recreativa uma
verve profissional, insistia que todos, na apresentação da Portela, estivessem
vestidos com a roupa da escola e se comportassem muito bem, a fim de demonstrar
que eram adeptos da lei e da ordem, “...todos
de gravata e sapato, impondo a arte e cultura de nossa raça, respeitando e
fazendo respeitar as leis, cultivando a união e afastando-se da violência...” Dessa
coincidência de interesses resulta o predomínio popular no Carnaval. O carnaval
da Praça Onze, até então abominado e visto como reduto de marginais, passa a
merecer espaço nos jornais. E ocorre uma articulação entre as elites e a massa
da população, até então divorciadas, patrocinada pelos novos detentores do
poder e perseguida com tenaz habilidade pelos antigos perseguidos.
(4) Maria Isaura Pereira de Queiroz versus Rachel Soihet:
“dominados pela elite, que aceita a sua participação em troca de voto”, “construção
da nacionalidade”.
(5) O caso de Paulo da Portela, página 145 da apostila 8 –
A Subversão Pelo Riso, Rachel Soihet
Nenhum comentário:
Postar um comentário