O texto de Jaime Benchimol sobre a Revolta da Vacina e antecedentes; urge acompanhar-se da apostila para mais esclarecimentos. Abração e até logo mais, povo bom!
3 => REFORMA
URBANA E REVOLTA DA VACINA NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO (Texto 7, mesmo
título)
Dos escombros gerados pela Revolta da Vacina em
1904 não emergiu um Rio de Janeiro idealizado por seus proponentes reformistas;
ao contrário, suscitaram novas contradições e expuseram as chagas de históricas
enfermidades sócio-políticas, desta vez agravadas pela política “racional”
daquela época.
O processo de
capitalidade ocorrido no Rio de Janeiro a partir da sua transformação em sede
de diversos governos nacionais (Vice-Reinados, Reino Unido, Primeiro e Segundo Império
e República Oligárquica) trouxe não apenas a preponderância ante um universo
luso-brasileiro mas também os problemas
concernentes à metrópole singular que era. Cidade colonial escravista, entrara
em meados do século XIX na fermentação da Segunda Revolução Industrial em
passos trôpegos, com sua economia ainda fortemente atrelada à escravidão paralela
às mudanças do capitalismo burguês, sobretudo na Europa. A cidade sofrera mudanças
estruturais à fórceps, com drenagens de pântanos, brejos e a ocupação de áreas
desabitadas na periferia, desafogando-se do crescimento desordenado com a
incipiente malha viária expandindo a população para freguesias ermas. Mas no
centro da cidade (a Cidade Velha, freguesias originais) tropeçava-se entre a
antiga estrutura material e as novas relações econômicas; Uma multidão
flutuante, heterogênea, morava e labutava na área central, ruas estreitas e
sinuosas e uma miríade de cativos e libertos, nacionais e estrangeiros,
produtos importados e gêneros primários para consumo e exportação, abafamento e
desordem urbana que contribuíam fartamente para a proliferação de epidemias
mais ou menos mortíferas , dependendo do período (sobre)vivido.
Mesmo
existindo evidências da presença da febre amarela no Brasil desde 1694, somente
a partir de meados do século XIX que a questão desta doença tornou-se
nacionalmente relevante. Os médicos brasileiros (com pouco tempo de
especializados, a partir de 1829) depararam-se com uma epidemia em 1850 que
atingira 90.658 dos 266 mil habitantes da cidade, causando 4.160 mortes (Chalhoub
fala em até 15 mil mortes). A partir de então, diversas Juntas e Inspetorias
foram instituídas para debater o assunto, mas não só tinham reduzidos recursos
estruturais para resolver o assunto da saúde pública (a epidemia extinguira-se
no final daquele ano) e o raio das ações desses órgãos restringia-se às cidades
litorâneas, especialmente ao Rio. A maioria das cidades interioranas e províncias
ficaram fora do projeto. Grosso modo, as epidemias acompanhavam as estações:
varíola, no inverno; febre amarela, no verão. E os especialistas estacionavam
em argumentos sobre a “natureza” das latitudes tórridas e a insalubridade do ambiente . O cólera atingiu
o Rio em 1855-56 e na década de 1890, pouco antes do Brasil ser alcançado por
outra pandemia, a da peste bubônica. Três pontos principais eram ressaltados
por eles na tarefa de “restaurar o equilíbrio humano”. Entre os pontos morbígenos sobressaíam as habitações,
especialmente as “coletivas”, onde se aglomeravam os pobres (e seus hábitos, a
ignorância e as sujeiras físicas e morais), os pântanos (foco de exalação de
miasmas) e os morros (que impediam a circulação dos ventos capazes de dissipar
esses maus ares).
A partir desses
apontamentos, surgiu um discurso ‘higienista’ por parte de simpatizantes da
monarquia onde urgia diminuir os infectados (salubridade), alongamento das vias
de circulação de ar (comodidade) e dar à cidade uma aparência burguesa
(beleza), discurso esse que entranhou-se no senso comum das elites e camadas médias,
voz ativa e influente na opinião pública, favorável a todo tipo de melhoramento
que transformasse a capital do Império numa cidade salubre e moderna.
Vem a República
e os problemas estruturais da cidade – e as epidemias – continuam. Apesar do
crescimento de bairros residenciais para onde segmentos da classe média (subúrbios)
e alta (Zona Sul) escapavam e se fixavam, o epicentro da crise ainda era o centro do Rio, a chamada
Cidade Velha e adjacências, lugar de cortiços e ruas estreitas onde a população
mais pobre se espremia e sobrevivia. Pereira Passos assumiu a prefeitura
do Rio em 30 de dezembro de 1902. E o
projeto de modificação estrutural da cidade, enfim, tem início; não sem um
significativo número de oposições, boa parte delas por conta da draconiana política
fiscal do governo, atingindo pesadamente as camadas menos favorecidas da
população – algumas infrações a título de multas regravam sobre licenças, cães
e até posturas – , incomodadas com a regulação da vida pessoal dos habitantes,
levando as medidas para o lado pessoal. Oswaldo Cruz apresenta ao Ministro
da Justiça em abril de 1903 o plano da campanha contra a febre amarela; o
sucesso das campanhas de vacinação dependeu de regulamentações jurídicas que
ampliaram o poder das autoridades sanitárias, sobretudo em relação à notificação
obrigatória dos casos de doenças infecciosas, face à resistência da população
desinformada. Para isso, foi criada uma instância do Judiciário (Juízo de
Feitos da Saúde Pública); o projeto que a regulamentava foi apresentado em maio
de 1903 e foi duramente atacado por opositores ao governo, sendo aprovado com
mutilações apenas no ano seguinte. Mas antes disso, o prefeito Pereira Passos
havia intensificado uma polícia sanitária nas habitações, vistoriando
energicamente as moradias com o apoio sistemático da polícia para o cumprimento
da determinação contra as reações desfavoráveis. Num aparato autenticamente
militar, Oswaldo Cruz utilizou os instrumentos legais de coação e, em menor
medida, meios de persuasão (“Conselhos do Povo”) contra os porta-vozes da oposição.
Em junho de 1904, o projeto que reinstaurava a obrigatoriedade da vacinação e
revacinação contra a varíola foi submetido ao Congresso com todo tipo de cláusulas
rigorosas incluindo multas e exigência de atestados diversos. Reacendeu-se a
oposição, agora reforçada com líderes operários, militares descontentes do Exército,
(estes, descontentes com a república de oligarcas renegados do Império) e
monarquistas. Em 5 de novembro foi criada a Liga Contra a Vacinação Obrigatória.
A lei foi
aprovada em 31 de outubro de 1904. A 9 de novembro, a cidade foi paralisada
pela revolta, por mais de uma semana, segundo Sevcenko (1984)(6) Chalhoub (1996)(7) e Carvalho
(8). Ao
invés de um choque entre as massas incivilizadas e a imposição inexorável da
razão e progresso, na verdade foi protagonizada a revolta por forças sociais
heterogêneas que gerou duas revoltas numa só: a revolta dos populares contra a
vacina e as medidas segregadoras das forças do aburguesamento da cidade sob a capa de “embelezamento”; e a
revolta militar, deflagrada dias depois, com o objetivo de depor Rodrigues
Alves da presidência.
Debelada em
suas duas faces, a popular e a militar, apenas a parcela civil sofrera com a dureza do
estado de sítio promulgado pelo Congresso para abafar a Revolta da Vacina, que
sacudiu a capital da República e servira de sangrento ritual de passagem da antiga cidade colonial e
escravista para a metrópole burguesa da ‘Belle-Èpoque’; À tribuna, subiam
parlamentares governistas e opositores (antes beligerantes) para invectivar os
rebeldes pobres, postos a ferros e despachados para o Acre, cumprir suas penas.
Para Sevcenko, a Revolta da Vacina foi a mais
explosiva manifestação da resistência dos grupos populares cariocas ao processo
autoritário de transformação do Rio em capital burguesa, reagindo à modernidade
cosmopolita de fito europeu como símbolos de um poder opressor. Cukierman (2001)
(9),
considera-a como o resultado da prática autoritária de cientistas convencidos
da superioridade de seu conhecimento técnico e de seu direito de exercer “um
poder tutelar ao qual todos teriam de se submeter, obrigatoriamente”. Carvalho
sustenta que a hostilidade popular ao regime republicano, externada já em
outras rebeliões, contribuiu para os acontecimentos de 1904. E Chalhoub recupera uma dimensão da
Revolta oculta tanto nos relatos da época como nas fontes historiográficas mais
conhecidas, a tradição negra no combate à
varíola: “Um dos mananciais da revolta seria o culto a Omolu, orixá que tinha o poder de espalhar a doença e, ao
mesmo tempo, defender seus devotos de estragos maiores [...] por meio de
material varioloso”. Criar obstáculos à ação desta divindade ou impor a vacina
animal preparada no Instituto Vacinogênico significava morte e devastação para
esse grupo social.
(6) SEVCENKO, Nicolau. A Revolta da Vacina. São Paulo,
1993: Scipione
(7) CARVALHO, José Murilo de.Os Bestializados: O Rio de
Janeiro e a República Que Não Foi.São Paulo, 1987: Companhia das Letras
(9) CUKIERMAN, Henrique Luiz. Manguinhos,outras histórias:
a tecnociência em terras brasileiras. Tese submetida ao Programa de Engenharia
de Produção da COPPE/UFRJ, Rio de Janeiro: novembro, 2001
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