terça-feira, 27 de novembro de 2012

Reforma Urbana e a Revolta da Vacina - Texto 7 (P2)




O texto de Jaime Benchimol sobre a Revolta da Vacina e antecedentes; urge acompanhar-se da apostila para mais esclarecimentos. Abração e até logo mais, povo bom!


3 => REFORMA URBANA E REVOLTA DA VACINA NA CIDADE DO RIO DE JANEIRO (Texto 7, mesmo título)

   Dos escombros gerados pela Revolta da Vacina em 1904 não emergiu um Rio de Janeiro idealizado por seus proponentes reformistas; ao contrário, suscitaram novas contradições e expuseram as chagas de históricas enfermidades sócio-políticas, desta vez agravadas pela política “racional” daquela época.
    O processo de capitalidade ocorrido no Rio de Janeiro a partir da sua transformação em sede de diversos governos nacionais (Vice-Reinados, Reino Unido, Primeiro e Segundo Império e República Oligárquica) trouxe não apenas a preponderância ante um universo luso-brasileiro  mas também os problemas concernentes à metrópole singular que era. Cidade colonial escravista, entrara em meados do século XIX na fermentação da Segunda Revolução Industrial em passos trôpegos, com sua economia ainda fortemente atrelada à escravidão paralela às mudanças do capitalismo burguês,  sobretudo na Europa. A cidade sofrera mudanças estruturais à fórceps, com drenagens de pântanos, brejos e a ocupação de áreas desabitadas na periferia, desafogando-se do crescimento desordenado com a incipiente malha viária expandindo a população para freguesias ermas. Mas no centro da cidade (a Cidade Velha, freguesias originais) tropeçava-se entre a antiga estrutura material e as novas relações econômicas; Uma multidão flutuante, heterogênea, morava e labutava na área central, ruas estreitas e sinuosas e uma miríade de cativos e libertos, nacionais e estrangeiros, produtos importados e gêneros primários para consumo e exportação, abafamento e desordem urbana que contribuíam fartamente para a proliferação de epidemias mais ou menos mortíferas , dependendo do período (sobre)vivido.
       Mesmo existindo evidências da presença da febre amarela no Brasil desde 1694, somente a partir de meados do século XIX que a questão desta doença tornou-se nacionalmente relevante. Os médicos brasileiros (com pouco tempo de especializados, a partir de 1829) depararam-se com uma epidemia em 1850 que atingira 90.658 dos 266 mil habitantes da cidade, causando 4.160 mortes (Chalhoub fala em até 15 mil mortes). A partir de então, diversas Juntas e Inspetorias foram instituídas para debater o assunto, mas não só tinham reduzidos recursos estruturais para resolver o assunto da saúde pública (a epidemia extinguira-se no final daquele ano) e o raio das ações desses órgãos restringia-se às cidades litorâneas, especialmente ao Rio. A maioria das cidades interioranas e províncias ficaram fora do projeto. Grosso modo, as epidemias acompanhavam as estações: varíola, no inverno; febre amarela, no verão. E os especialistas estacionavam em argumentos sobre a “natureza” das latitudes tórridas e  a insalubridade do ambiente . O cólera atingiu o Rio em 1855-56 e na década de 1890, pouco antes do Brasil ser alcançado por outra pandemia, a da peste bubônica. Três pontos principais eram ressaltados por eles na tarefa de “restaurar o equilíbrio humano”. Entre  os pontos  morbígenos sobressaíam as habitações, especialmente as “coletivas”, onde se aglomeravam os pobres (e seus hábitos, a ignorância e as sujeiras físicas e morais), os pântanos (foco de exalação de miasmas) e os morros (que impediam a circulação dos ventos capazes de dissipar esses maus ares).
   A partir desses apontamentos, surgiu um discurso ‘higienista’ por parte de simpatizantes da monarquia onde urgia diminuir os infectados (salubridade), alongamento das vias de circulação de ar (comodidade) e dar à cidade uma aparência burguesa (beleza), discurso esse que entranhou-se no senso comum das elites e camadas médias, voz ativa e influente na opinião pública, favorável a todo tipo de melhoramento que transformasse a capital do Império numa cidade salubre e moderna.
      Vem a República e os problemas estruturais da cidade – e as epidemias – continuam. Apesar do crescimento de bairros residenciais para onde segmentos da classe média (subúrbios) e alta (Zona Sul) escapavam e se fixavam, o epicentro  da crise ainda era o centro do Rio, a chamada Cidade Velha e adjacências, lugar de cortiços e ruas estreitas onde a população mais pobre se espremia e sobrevivia. Pereira Passos assumiu a prefeitura do Rio em 30 de dezembro de 1902.  E o projeto de modificação estrutural da cidade, enfim, tem início; não sem um significativo número de oposições, boa parte delas por conta da draconiana política fiscal do governo, atingindo pesadamente as camadas menos favorecidas da população – algumas infrações a título de multas regravam sobre licenças, cães e até posturas – , incomodadas com a regulação da vida pessoal dos habitantes, levando as medidas para o lado pessoal. Oswaldo Cruz apresenta ao Ministro da Justiça em abril de 1903 o plano da campanha contra a febre amarela; o sucesso das campanhas de vacinação dependeu de regulamentações jurídicas que ampliaram o poder das autoridades sanitárias, sobretudo em relação à notificação obrigatória dos casos de doenças infecciosas, face à resistência da população desinformada. Para isso, foi criada uma instância do Judiciário (Juízo de Feitos da Saúde Pública); o projeto que a regulamentava foi apresentado em maio de 1903 e foi duramente atacado por opositores ao governo, sendo aprovado com mutilações apenas no ano seguinte. Mas antes disso, o prefeito Pereira Passos havia intensificado uma polícia sanitária nas habitações, vistoriando energicamente as moradias com o apoio sistemático da polícia para o cumprimento da determinação contra as reações desfavoráveis. Num aparato autenticamente militar, Oswaldo Cruz utilizou os instrumentos legais de coação e, em menor medida, meios de persuasão (“Conselhos do Povo”) contra os porta-vozes da oposição. Em junho de 1904, o projeto que reinstaurava a obrigatoriedade da vacinação e revacinação contra a varíola foi submetido ao Congresso com todo tipo de cláusulas rigorosas incluindo multas e exigência de atestados diversos. Reacendeu-se a oposição, agora reforçada com líderes operários, militares descontentes do Exército, (estes, descontentes com a república de oligarcas renegados do Império) e monarquistas. Em 5 de novembro foi criada a Liga Contra a Vacinação Obrigatória.
     A lei foi aprovada em 31 de outubro de 1904. A 9 de novembro, a cidade foi paralisada pela revolta, por mais de uma semana, segundo Sevcenko (1984)(6) Chalhoub (1996)(7) e Carvalho (8). Ao invés de um choque entre as massas incivilizadas e a imposição inexorável da razão e progresso, na verdade foi protagonizada a revolta por forças sociais heterogêneas que gerou duas revoltas numa só: a revolta dos populares contra a vacina e as medidas segregadoras das forças do aburguesamento  da cidade sob a capa de “embelezamento”; e a revolta militar, deflagrada dias depois, com o objetivo de depor Rodrigues Alves da presidência.
    Debelada em suas duas faces, a popular e a militar,  apenas a parcela civil sofrera com a dureza do estado de sítio promulgado pelo Congresso para abafar a Revolta da Vacina, que sacudiu a capital da República e servira de sangrento  ritual  de passagem da antiga cidade colonial e escravista para a metrópole burguesa da ‘Belle-Èpoque’; À tribuna, subiam parlamentares governistas e opositores (antes beligerantes) para invectivar os rebeldes pobres, postos a ferros e despachados para o Acre, cumprir suas penas.
   Para Sevcenko, a Revolta da Vacina foi a mais explosiva manifestação da resistência dos grupos populares cariocas ao processo autoritário de transformação do Rio em capital burguesa, reagindo à modernidade cosmopolita de fito europeu como símbolos de um poder opressor. Cukierman (2001) (9), considera-a como o resultado da prática autoritária de cientistas convencidos da superioridade de seu conhecimento técnico e de seu direito de exercer “um poder tutelar ao qual todos teriam de se submeter, obrigatoriamente”.  Carvalho sustenta que a hostilidade popular ao regime republicano, externada já em outras rebeliões, contribuiu para os acontecimentos de 1904. E Chalhoub recupera uma dimensão da Revolta oculta tanto nos relatos da época como nas fontes historiográficas mais conhecidas, a tradição negra no combate à varíola: “Um dos mananciais da revolta seria o culto a Omolu, orixá que tinha o poder de espalhar a doença e, ao mesmo tempo, defender seus devotos de estragos maiores [...] por meio de material varioloso”. Criar obstáculos à ação desta divindade ou impor a vacina animal preparada no Instituto Vacinogênico significava morte e devastação para esse grupo social.
    
   
(6) SEVCENKO, Nicolau. A Revolta da Vacina. São Paulo, 1993: Scipione
(7) CARVALHO, José Murilo de.Os Bestializados: O Rio de Janeiro e a República Que Não Foi.São Paulo, 1987: Companhia das Letras
(9) CUKIERMAN, Henrique Luiz. Manguinhos,outras histórias: a tecnociência em terras brasileiras. Tese submetida ao Programa de Engenharia de Produção da COPPE/UFRJ, Rio de Janeiro: novembro, 2001 

Nenhum comentário:

Postar um comentário