sexta-feira, 30 de março de 2012

A Comuna de Paris - colaborações dos amigos (Hist.Contemporânea)







Abaixo, a colaboração de nossa colega Monica Santos: um artigo sobre a Comuna de Paris, texto de Peter Kropotkin, publicado pelo Prof. Luiz Arnaut, UFMG.








 UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas
Departamento de História
Disciplina: História Contemporânea
Prof. Luiz Arnaut
Textos e documentos
A Comuna de Paris, 1871
Peter Kropotkin   (1)


No dia 18 de março de 1871, o povo de Paris levantou-se contra o governo que desprezava e
detestava e declarou que Paris era agora uma cidade independente, livre e dona do seu destino.
Essa derrubada do poder central aconteceu sem a costumeira encenação teatral que normalmente
acompanha as revoluções. Não houve tiros e o sangue não chegou a correr sobre as barricadas. Quando o
povo armado saiu às ruas, os governantes fugiram, as tropas abandonaram a cidade e os funcionários civis
refugiaram-se apressadamente em Versalhes, levando tudo o que podiam. O governo se evaporou como uma
poça de sangue estagnado em meio à brisa da primavera e no dia 19 de março Paris se viu livre da sujeira
que a havia maculado, sem que tivesse corrido quase nenhuma gota de sangue de seus filhos. Entretanto essa
mudança assim obtida deu início a uma nova era na longa série de revoluções pelas quais os povos
começavam a trocar a servidão pela liberdade. Sob o nome de “Comuna de Paris”, nasceu uma nova idéia
que havia de se tornar o ponto de partida para revoluções futuras.
Como acontece sempre, essa idéia não tivera origem no cérebro de um individuo isolado, nem era
fruto das reflexões de um filosofo. Ela surgiu do espírito coletivo, nasceu no coração de toda a comunidade.
Mas a princípio era algo vago e muitos daqueles que agiram e deram suas vidas para defendê-la não a viam
com os mesmos olhos com que hoje a vemos. Eles não percebiam o alcance da revolução que haviam criado
ou as possibilidades do novo conceito que acabavam de pôr em prática. Só depois é que começaram
lentamente a entender suas conseqüências. Só mais tarde, quando começaram a refletir sobre o novo conceito
é que ele se tornou mais claro e preciso e a beleza, justiça e importância dos resultados obtidos puderam ser
avaliados.
Durante os cinco ou seis anos anteriores à Comuna, o socialismo ganhara novo alento graças ao
rápido desenvolvimento da Associação Internacional de Operários. Em suas filiais regionais ou durante os
congressos que realizava, os trabalhadores da Europa se encontravam e trocavam idéias sobre a questão
social, algo que nunca tinham feito antes. Entre aqueles que percebiam que a revolução social era inevitável
e que se preparavam ativamente para vivê-la, surgiu um problema que deveria ser resolvido antes de
qualquer outro: O atual desenvolvimento da indústria forçará a eclosão de uma grande revolução econômica;
essa revolução abolira a propriedade privada, fazendo com que todo o capital reunido pelas gerações
pregressas passe a ser um bem comum a todos.
Após essas mudanças no sistema econômico, qual seria a melhor forma de organização política?
“Não poderá ser uma agremiação apenas nacional respondeu a Associação Internacional mas deve estenderse
além das fronteiras artificiais e de todos os limites naturais.” Logo essa idéia grandiosa apossou-se do
coração e do cérebro dos homens e, embora venha sendo perseguida desde então pelos esforços conjuntos de
reacionários dos mais variados tipos, permanece viva ainda hoje. E quando as vozes dos povos em revolta
tiverem removido os obstáculos que impedem o seu progresso, ela ressurgira mais forte do que nunca...
Mas ainda faltava descobrir quais deveriam ser os elementos que iriam compor essa gigantesca
associação. A essa pergunta, foram dadas duas respostas que expressavam duas correntes distintas. Uma
falava em estado popular; outra, em anarquia.
Os socialistas alemães defendiam a idéia de que o estado deveria apossar-se de todos os recursos e
riquezas acumuladas, distribuindo-as entre as associações de operários e mais, que estes deveriam tomar a si
as atividades de produção e comércio e, de uma maneira geral, todas as atividades da sociedade.
A isso os socialistas latinos, que tinham atrás de si uma grande experiência revolucionária,
responderam dizendo que seria um milagre se tal estado pudesse um dia existir, mas que, se isso chegasse a
acontecer, certamente ele acabaria por se tornar a pior das ditaduras. Esse ideal de criar um Estado todopoderoso
e bom é apenas uma cópia de algo que existiu no passado, diziam, e confrontavam-no com a idéia
de um novo ideal, a an-arquia, isto é, a abolição total do estado, um sistema em que todas as formas de
organização social, da mais simples à mais complexa, fossem obtidas através de federações livres, reunindo
grupos populares de produtores e consumidores.
Até mesmo os socialistas mais liberais admitiram que a anarquia sem dúvida representava um tipo de
organização bem superior àquela pretendida pelo estado popular. Mas, diziam eles, o ideal anarquista é algo
tão distante, que não podemos perder tempo com ele agora.
Ao mesmo tempo, a verdade é que a teoria anarquista necessitava de uma forma de expressão que
fosse clara e concisa, uma fórmula ao mesmo tempo simples e pratica, em que pudesse demonstrar suas
origens e incorporar suas concepções, onde provasse que era apoiada por uma tendência que já existia antes
entre o povo. Uma federação de associações operárias e grupos de consumidores que não levasse em conta as
fronteiras e se mantivesse independente em relação aos estados já existentes ‘parecia urna idéia demasiado
vaga: e mais, era fácil perceber que ela não poderia satisfazer totalmente a infinita variedade de exigências
humanas. Era preciso encontrar uma fórmula mais simples, mais facilmente compreensível, que tivesse uma
base firme e bem enraizada na vida real.
Se o problema se resumisse apenas a encontrar a melhor forma de elaborar urna teoria, poderíamos
dizer que as teorias, como teorias, não são assim tão importantes. Mas enquanto uma nova idéia não encontra
uma forma de expressão clara e precisa, a partir de fatos concretos, tais como eles existem na realidade, ela
não conseguirá apoderar-se da mente dos homens. Nenhum homem se animará a mergulhar no desconhecido
se não for animado por idéias positivas e claramente formuladas que lhe sirvam, por assim dizer, como um
trampolim quando chegar o momento.
Quanto a esse momento, será preciso que a própria vida o indique.
Durante cinco longos meses, Paris esteve cercada pelos alemães. Durante cinco meses, ela precisou
lançar mão de seus próprios ‘recursos vitais e de toda a força moral de que dispunha. Teve então idéia de sua
capacidade de resistência e percebeu o que ela significava. Percebeu também que o bando de tagarelas que
havia tomado o poder não tinha a menor idéia sobre como organizar a defesa da cidade ou sobre como
promover seu desenvolvimento interno. Viu um governo que se opunha a todas as manifestações de
inteligência daquela metrópole poderosa. Entendeu, finalmente, que qualquer governo é impotente para
proteger-se das grandes catástrofes ë incapaz de preparar o caminho para a evolução. Durante o cerco, a
cidade vira seus defensores, os operários, sofrendo as mais terríveis privações enquanto os ociosos se
regalavam em meio a um luxo insolente e, graças aos esforços do governo central, presenciara o fracasso de
todas as tentativas de acabar com essa situação escandalosa. E cada vez que o povo demonstrava sinais de
um desejo de libertar-se, o governo colocava novos grilhões na corrente. Essas experiencias fizeram com que
se chegasse naturalmente à conclusão de que Paris precisava libertar-se, tornar-se uma comunidade
independente, capaz de satisfazer sozinha todas as aspirações de seus cidadãos.
Mas a Comuna de Paris não podia ser mais do que uma primeira tentativa. Iniciada ao término de
uma grande guerra, espremida entre dois exércitos prontos a dar as mãos para esmagá-la, ela não se atreveu a
enveredar pelo caminho da revolução econômica. Não iniciou um processo de expropriação do capital ou de
organização do trabalho. Não soube ao menos avaliar os recursos da cidade. Também não conseguiu romper
com a tradição de um governo representativo, nem procurou realizar dentro da comuna, o mesmo tipo de
organização que, partindo do simples, chegas- se ao mais complexo, e que fora instaurada externamente pela
proclamação da independência da cidade e a livre associação das federações.
E no entanto, o certo é que se a Comuna de Paris tivesse durado mais alguns meses, ela teria sido
inevitavelmente levada pelas circunstâncias em direção a essas duas revoluções.
Não esqueçamos que a classe média francesa gastou quatro anos (de 1789 a 1793) em ações
revolucionárias, antes que conseguisse transformar a monarquia limitada numa república. Deveríamos pois
surpreender-nos ao ver que o povo de Paris não conseguiu ultrapassar de um salto a distância que separa uma
comuna anarquista de um governo de espoliadores? Além disso, não devemos esquecer que a próxima
revolução que, pelo menos na França e na Espanha deverá ser comunista, vai retomar o trabalho da Comuna
de Paris no ponto que foi interrompido pelos massacres da soldadesca de Versalhes.
A Comuna foi enfim derrotada e sabemos muito bem como a classe média se vingou do susto que o
povo lhe havia pregado ao tentar soltar as cordas que seus senhores mantinham em torno dos seus pescoços.
Isso veio provar que a sociedade moderna é, na verdade, composta por duas classes: de um lado, o homem
que trabalha e cede mais da metade daqui- lo que produz aos que detêm o monopólio da propriedade e que,
no entanto, parece indiferente aos males que os patrões podem fazer-lhe; de outro, o ocioso, o espoliador que
odeia o seu escravo e que está sempre pronto a matá-lo, como se ele fosse uma caça qualquer, um homem
animado pelos mais selvagens instintos sempre que vê ameaçada a sua propriedade.
Depois de ter cercado o povo de Paris e fechado todas as vias de saída, o governo soltou sobre eles
um bando de soldados embrutecidos pelo vinho e pela vida na caserna, homens que haviam sido
publicamente instruídos para “acabar logo com os lobos e suas crias”.
Depois dessa orgia louca, dos corpos empilhados após esse extermínio em massa, veio a vingança
mesquinha, o chicote, os ferros, os golpes e insultos dos carcereiros, a quase morte pela fome, enfim todos os
requintes da crueldade. Poderá o povo esquecer esses fatos?
Derrubada mas não vencida, a Comuna renasceu. Já não é mais um sonho dos vencidos, acariciando
na imaginação a bela imagem da esperança. Não! A comuna se tornou hoje o objetivo visível e definido da
revolução que ruge sob os nossos pes. A idéia penetrou fundo entre as massas, que a recebe com gritos de
entusiasmo. Contamos com a geração atual para fazer com que a revolução aconteça dentro da comuna, para
pôr um fim ao ignóbil sistema de exploração nas mãos da classe média, para livrar o povo da tutela do
Estado e iniciar uma nova era de liberdade, igualdade, solidariedade.
Dez anos nos separam do dia em que o povo de Paris derrubou o traidor que subira ao poder no
crepúsculo do Império; por que será que as massas oprimidas do mundo civilizado ainda hoje sentem uma
irresistível atração pelo movimento de 1871? Por que a idéia representada pela Comuna de Paris ainda
fascina os operários de todos os países? A resposta é fácil. A revolução de 1871 foi, antes de mais nada, uma
revolução popular, feita pelo próprio povo, surgindo espontaneamente da massa e nela encontrando seus
defensores, seus heróis e seus mártires. E exatamente por ser tão “baixa”, a classe média jamais pode perdoála.
E ao mesmo tempo, o que a tornava tão popular era seu caráter de revolução social, uma idéia certamente
um tanto vaga, talvez inconsciente, mas ainda assim um esforço no sentido de obter enfim, depois de séculos
de luta, a verdadeira liberdade, a verdadeira igualdade para todos os homens. Era o levante das camadas mais
baixas buscando a conquista dos seus direitos.
Muitas foram as tentativas feitas para mudar o verdadeiro significado dessa revolução,
representando-a como um simples esforço para retomar a independência de Paris e desse modo constituir um
pequenino Estado dentro da França. Mas nada pode ser mais falso. Paris não procurou se isolar da França,
nem muito menos conquistá-la pela força das armas; a ela não agradaria a idéia de permanecer encerrada
dentro de suas próprias fronteiras, como uma monja num convento: o que a inspirava não era o espírito
limitado do claustro. Se ousara reclamar sua independência, se tentara evitar a interferência do poder central
em seus assuntos, foi porque vira nessa independência uma forma de elaborar com tranqüilidade as bases da
futura organização política e de provocar uma revolução social dentro de seus próprios limites. Uma
revolução que teria alterado completamente todo o sistema de produção e troca, dando-lhe como base a
justiça; que teria modificado totalmente as relações humanas colocando-as em pé de igualdade; que teria
renovado a nossa moral social baseando-se na igualdade e na solidariedade. Para o povo de Paris, a
independência da cidade era apenas um meio, seu objetivo maior era a revolução social.
E esse objetivo poderia ter sido atingi-lo se a revolução de 18 de março tivesse seguido seu curso
natural, se o povo de Paris não tivesse sido trucidado pelos assassinos de Versalhes. A verdadeira
preocupação do povo de Paris, desde os primeiros dias de sua independência, foi encontrar uma idéia precisa
e clara, algo que pudesse ser facilmente entendido por todos e que resumisse em poucas palavras o que era
necessário para que a revolução se tornasse uma realidade.
Mas uma grande idéia não pode germinar num só dia, por mais rápida que seja a elaboração e a
difusão de idéias durante os períodos revolucionarios. Ela precisa sempre de um determinado tempo para que
possa desenvolver-se, para que penetre na massa, transformando-se finalmente em ação e a Comuna de Paris
não lhe deu tempo suficiente. Ela fracassou principalmente porque, como já observamos antes, há dez anos
atrás o socialismo passava por um período de transição. O comunismo autoritário e semi-religioso de 1848 já
não conseguia conquistar as mentes mais práticas e mais livres da nossa época. O coletivismo que tentará
juntar o sistema de salários com a propriedade privada era incompreensível, despido de atrativos e cheio de
falhas que dificultavam a sua aplicação na prática. O comunismo livre ou anarquista recém começava a
tomar forma no cérebro dos operários e ainda não tinha coragem de provocar as críticas daqueles que
defendiam o governo. Estavam todos indecisos. Os próprios socialistas, sem um objetivo definido em vista,
não se atreviam a lançar-se sobre a propriedade privada; eles se iludiam com a desculpa que já impedira a
ação de muitos outros em épocas anteriores: “Precisamos ter primeiro a certeza de que venceremos e só
depois será possível ver o que pode ser feito”.
Certeza na vitória! Como se houvesse alguma forma de criar uma comuna livre sem acabar com a
propriedade privada. Como se fosse possível vencer o inimigo quando as massas não estão diretamente
interessadas na vitória da revolução, percebendo que ela poderá trazer bem estar moral, material e intelectual
para todos! Eles tentaram consolidar a Comuna e só depois tratar da revolução social sem perceber que a
única forma correta de agir seria consolidar a Comuna através da revolução social.
O mesmo aconteceu com respeito ao conceito de governo. Ao proclamar a Comuna livre, o povo de
Paris proclamara também um princípio básico do anarquismo, ou seja, a derrubada do estado. Mas como o
conceito de anarquismo recém começava a surgir, não tardou para que fosse contido, e logo o velho princípio
da autoridade ressurgiu e o povo se outorgou um Conselho nos moldes dos conselhos municipais já
existentes.
Entretanto, se admitimos que a existência de um governo central que regule as relações entre as
comunas e algo totalmente desnecessário, por que deveríamos admitir que necessitamos dele para regular as
relações mútuas dos vários grupos que constituem a comuna? E se deixamos que as próprias comunas
diretamente interessadas decidam sobre as questões que interessam várias cidades ao mesmo tempo, por que
recusar esse direito aos vários grupos que compõem cada comuna? Assim como nos parece desnecessária a
existência de um governo fora da comuna, deveríamos também perceber a inutilidade de um governo dentro
dela.
Mas em 1871, o povo de Paris, que já derrubou tantos governos, recém fazia a sua primeira tentativa
de revolta contra o próprio sistema: conseqüentemente, deixaram-se levar pela admiração fetichista que os
governos inspiravam então e criaram o seu próprio governo.
O resultado todos conhecem. Paris enviou seus filhos mais dedicados para a Câmara Municipal. Lá,
perdidos entre pilhas de velhos documentos, obrigados a legislar quando o instinto lhes dizia que deveriam
estar agindo entre a massa, obrigados a discutir quando era necessário agir, a acomodar-se quando a melhor
política teria sido lutar e, finalmente, perdendo a inspiração que so e renovada pelo contato continuo com as
massas, eles se viram reduzidos à impotência. Paralisados pela distância que os separava do povo – o centro
e coração da revolução – eles próprios acabaram paralisando a iniciativa popular.
Assim, a Comuna de Paris, fruto de um período de transição, nascida sob a mira das armas
prussianas, estava destinada a desaparecer. Mas pelo seu caráter eminentemente popular. ela deu origem a
uma nova série de revoluções e pelas idéias que lançou tornou-se a precursora de todas as revoluções sociais.
O povo aprendeu a lição e, quando surgirem mais uma vez na França os protestos das comunas revoltadas,
ele já não esperara que o governo tome atitudes revolucionárias. Quando tiverem se libertado dos parasitas
que os devoram, tomarão posse de toda a riqueza social disponível de acordo com os princípios do
comunismo anarquista. E quando tiverem abolido totalmente a propriedade privada, o governo e o estado,
irão se organizar livremente, de acordo com as necessidades indicadas pela própria vida. Rompendo as
correntes, derrubando seus ídolos, a humanidade marchará em direção a um futuro melhor, desconhecendo
senhores e escravos e venerando ainda os mártires que pagaram com seu sofrimento e o seu sangue naquelas
primeiras tentativas de emancipação que iluminaram a nossa marcha pela conquista da liberdade.

(1) WOODCOCK, George (org.) Grandes Escritos Anarquistas. Porto Alegre, LP&M, 1977.


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