segunda-feira, 30 de abril de 2012

As Estruturas na Alta Idade Média - O Mundo Carolíngio

Resumo da próxima matéria do Prof. Alexandre Mérida - vamos lá, rumo ao canudo!




LIQUIDIFICANDO E PENEIRANDO
HISTÓRIA MEDIEVAL
O MUNDO CAROLÍNGIO



MENDONÇA, Sonia Regina de. As Estruturas na Alta Idade Média Ocidental. O Mundo Carolíngio. Rio de Janeiro: Editora Brasiliense, 1985.


Resumido e ilustrado livremente por: Jorge Luiz da Silva Alves, 3º período, UCAM/Santa Cruz (noite).




FORMAS DE PRODUÇÃO


Do século V ao século VIII, a Europa Ocidental atravessou um processo de regionalização e fragmentação de todo arcabouço do mundo romano; apenas a Igreja, por sua amálgama entre os mundos bárbaro (ou transdanubiano) e romano, é que preservou a idéia do que seria um poder universal num panorama totalmente descentralizado. Enquanto Roma constituía uma nova forma de produção não escravista no campo com a ampliação das vilas e a fixação da população dispersa nos domínios, os bárbaros contribuíram para acentuar o processo supracitado ao recriar o campesinato livre.
Constituindo aproximadamente cinco por cento da população do Ocidente clássico, os germanos que produziam em seus alódios¹ tiveram constrangimentos para se pôr sob a proteção de um senhor dominial. Detentor de uma trecho daquelas terras, equiparavam-se aos colonos de origem romana e aos escravos; e como não tinham, esses pequenos proprietários, condições de resistir às grandes glebas senhoriais, acabavam absorvidos por estas. Lentamente, a gestação do Feudalismo acontecia na fusão de três células: a grande propriedade, a reserva comunal e a pequena exploração (tenência), resultando no domínio. E, de igual modo, escravos e livres fundiam-se para criar o servo.
O domínio é identificado à grande/enorme propriedade rural e muitas vezes interpretava-se como sendo o senhor de um grande número de vilas. Porém, aqui interpretaremos ao nível de cada vila o pensamento sobre domínio. Algo entre 200 a 2000 hectares, ou daí para cima. O traço característico de um domínio carolíngio não era tanto a sua dimensão mas a estrutura de seu funcionamento, a forma como era explorado e a distribuição interna de suas partes entre o senhor e os camponeses. Dividia-se em duas partes: a reserva senhorial (mansus indominicatum) e as tenências camponesas, também chamadas de mansos. A reserva senhorial consistia na maior e melhor fração da terra dominial, compreendendo três espaços bem demarcados: terras cultiváveis, a corte e a terra inculta. As primeiras eram os campos de exploração direta do proprietário e englobavam também as vinhas, os prados e os solos silvestres e baldios (importantes para a pastagem do gado menor e na obtenção de esterco). Esta reserva, por seu turno, organizava-se ao redor da corte, o centro de exploração da terra arável. Celeiros, cocheiras, estábulos, cozinha, gineceus (oficinas artesanais), moinhos e capela compunha os anexos desta seção. A maior parte da reserva senhorial compunha-se de bosques, o elemento complementar da economia agrária da Alta Idade Média, pois dali – a área de caça senhorial – saíam os couros e peles que substituíam os tecidos e onde se cevava o gado miúdo.

O conjunto das explorações camponesas constituíam-se nos dois terços restantes de um domínio, e essas tenências tinham caráter hereditário entre os seus possuidores. Era necessário tal recurso distributivo por parte do senhorio porque era preciso fazer frente à estagnação demográfica existente desde a crise no Império Romano, que desequilibrava a relação entre a mão-de-obra disponível e a necessária; e o regime agrário deveria se organizar visando a disponibilidade imediata de uma quantidade elevada de trabalhadores capazes de compensar até mesmo os efeitos do esgotamento progressivo da escravidão. Tornava-se mais vantajoso para o detentor de um domínio estabelecer o escravo – elemento cada vez mais residual na realidade embrionária do feudalismo – numa tenência, da qual ele tiraria seu próprio sustento ou, ainda, requisitar o grande número de jornadas de trabalho (corvéias) que a reserva exigia dos camponeses livres possuidores de mansos. Desta forma, a realidade do regime dominial era de fixar um amplo reservatório de mão-de-obra para o cultivo do mansus indominicatum, fossem quem fossem.
Embora a definição teórica de tenência significasse uma unidade de exploração capaz de satisfazer as necessidades de um casal de cultivadores, na prática o manso apresentava-se sob diferentes formas dentro de um mesmo domínio; distinguia-se, basicamente, de acordo com seu estatuto legal, ou seja, o manso livre do manso servil – isto é, sob a condição jurídica de seus detentores, homens livres ou escravos. O manso livre, em princípio, deveria ser maior do que o servil e era gravado com obrigações menos pesadas para o camponês que o detinha, como por exemplo, serviços de transporte e prestações ocasionais na reserva senhorial. O manso servil, ao contrário, impunha para o seu detentor (um escravo estabelecido) uma série de tarefas mais braçais e de caráter permanente junto à reserva senhorial. Mas, independente disso, todos os mansos eram dependentes dum senhor que deles esperava, anualmente, uma renda fixa ou censo, o símbolo do aluguel da fração de terra cultivada.
Até o século VIII tanto o camponês livre quanto o escravo estabelecido eram os emprestadores de suas qualidades às tenências que cultivavam. Mas, a partir daí, a situação invertera-se: mansos livres começaram a ser ocupados por escravos e tenências servis começavam a ser ocupadas por trabalhadores livres, graças aos senhores que, indistintamente, passaram a impor obrigações semelhantes para todas as tenências de uma mesma categoria, desconsiderando a condição jurídica de seu ocupante ou a capacidade produtiva e dimensões territoriais dos mansos; a motivação por trás dessa miscelânea é que o número de corvéias (jornadas de trabalho) aumentou consideravelmente, beneficiando a fonte dos bens necessários à manutenção tanto do senhor e sua casa quanto de seus companheiros de prestígio. Com essa inversão, nivelara-se a população rural, sendo a terra a definidora do estatuto dos homens: a necessidade do consumo senhorial que definira os parâmetros da exploração econômica.



A economia desta época caracterizava-se pelo desperdício: a dinâmica do funcionamento do organismo senhorial pressupunha grandes áreas de terra e mão-de-obra para a obtenção de medíocres excedentes de produção. Como estes eram apropriados pela aristocracia dominante, permitiam-lhe um nível de vida relativamente elevado, medido pela maior ou menor auto-suficiência da propriedade rural, transformada num símbolo de honra, prestígio e poder.
Mas esse domínio clássico ocidental foi tão clássico assim? Dentro dos limites do Império Carolíngio (onde nascera e se difundira), o domínio e sua dinâmica numérica e geográfica encontraram campo fértil para se impor como padrão econômico; mas em áreas afastadas deste império não chegara sequer a se enraizar, como na Escandinávia ou nas regiões do Mar do Norte. Nas províncias germânicas carolíngias, a estrutura dominial fora menos rígida talvez por conta da dispersão e distância entre os mansos livres que estes pagavam apenas o censo fixo anual, sem corvéias. De igual forma, verificara-se na Lombardia, Flandres, e oeste da Gália. A predominância dos mansos servis distribuídos ao redor da corte implicou a falência dos serviços devidos pelos camponeses livres à reserva, uma vez que esta dispunha de mão-de-obra suficiente. Hoje, parece não haver mais dúvidas de que o regime dominial não cobrira toda a área rural do Ocidente, levando muitos medievalistas à conclusão de que o domínio clássico não configurava-se como regra, e sim, exceção.





SOCIEDADE

Com a instalação progressiva nas terras romano-ocidentais, os bárbaros transdanubianos foram responsáveis pela criação de inúmeros reinos sobre as ruínas políticas do antigo império. Apesar de suas diversidades, todos tinham por fundamento a noção de fidelidade pessoal entre o chefe do bando armado (vulgarmente chamado de rei) e o seu séquito de guerreiros. Essencialmente militar e espontânea, a solidariedade germânica era incompatível com a idéia de Estado ou bem público, e a concepção de reino fundia-se com o raciocínio bárbaro de que este era a propriedade particular do soberano, usando-o como bem lhe aprouvesse.
A solidariedade era garantida pela prestação de um juramento de fidelidade (ou recomendação) através da qual os súditos se incorporavam à clientela em torno do rei. Esse vínculo era de obrigação mútua: aos fiéis (vassalos), cabia a obrigação do serviço das armas; ao soberano (suserano), o dever de proteger e auxiliar sua fiel clientela, propiciando-lhe, sobretudo, os meios de seu sustento. Desenvolvera-se, desde então, a prática da concessão do benefício, isto é, qualquer bem (mas quase sempre a terra) doado em recompensa pelos serviços prestados. Assim, o poder militar do rei saía fortalecido.




Havia uma contradição neste sistema: quanto mais vassalos pretendesse possuir o soberano, maior deveria ser o seu patrimônio, em face do oneroso sustento de seus seguidores, daí a necessidade da realização de novas conquistas. O círculo vicioso oriundo desta contradição gerava duas consequências: a mudança da essência do juramento – deslocada da lealdade ao chefe para o interesse na terra a ser obtida -, e a fragmentação inevitável do reino; neste último caso, ao ceder as terras, o rei cedia também parte do seu direito sobre a população local, e, dependendo de cada beneficiado, a autoridade real era posta em plano secundário pela autoridade local. O poder público desgastava-se lentamente e, no Império Carolíngio (onde essa relação suserano-vassálica tivera maior incidência), isso seria fatal para a manutenção da unidade territorial a partir do século IX.
No tocante ao trabalho nos primórdios do Feudalismo (século V ao VIII/IX), consolidara-se em definitivo a servilização da base estamental. Uma vez que era impossível à realeza manipular diretamente o campesinato (por obra dessas relações suserano-vassálicas, só mesmo as tenências nos próprios domínios reais eram passíveis de controle), a concessão de benefícios aos vassalos isolava a monarquia em relação ao mundo rural, reforçando ainda mais o poder dos senhores sobre a população produtora. Mas foi graças a isso que trabalhadores, livres ou escravos, tiveram sua condição social nivelada.




Numa análise inicial, parece que a nivelação fora gerada pela confusão entre os estatutos do homem livre e do escravo. Mas como a diferença entre eles era claramente estigmatizada pelo pagamento do capitagium pelo escravo (imposto de obrigação congênita transmitida por linha materna, de geração em geração), percebera-se, por fim, que a confusão se dera entre os estatutos da terra, que se tornara o fundamento de toda a sociedade. A exploração do produtor direto não se dava mais por sua situação legal mas pela do manso que cultivava, o que igualou a cobrança de encargos por igual (livres ou servis), independente do camponês que a ocupasse.
Veja como se deu esse nivelamento; em princípio, é importante distinguir que o reforço da dependência camponesa repercutiu de forma diferente sobre duas categorias de homens livres que existiam até então, os pagensi (francos) e os colonos.
Os pagensi ou pequenos proprietários eram os únicos cultivadores com total liberdade jurídica e econômica em pleno gozo da propriedade de sua terra e instrumentos de trabalho. Como francos, podiam ser ouvidos e julgados nos tribunais públicos. E como eram consanguíneos dos transdanubianos, deviam à realeza as obrigações elementares de todo cidadão: participação em tribunais públicos de sua região e a prestação de serviço militar (As Invasões Bárbaras) . Mas em função da disparidade existente entre sua condição econômica e sua condição jurídica, que lhes gerava encargos tão pesados, os pagensi achavam-se em vias de extinção; mesmo com todo esforço que os governantes carolíngios fizeram para evitá-lo, a pressão feita pelos grandes proprietários terminou por agregá-los à servidão nascente.



Os colonos, por seu turno, definiam-se como o homem juridicamente livre mas não proprietário, frutos da desagregação do império romano com a fuga dos citadinos para o campo em sua submissão aos grandes proprietários. Usufrutário permanente de uma tenência num domínio, sua dependência com relação ao senhor era total, pois não mais haviam mecanismos legais para protegê-los, e com isso, a mediação entre eles e o Estado se fazia através do grande proprietário. Quando homens livres, os colonos também deviam as obrigações oriundas da antiga cidadania. Só que era comum os senhores subtraírem os deveres militares de seus colonos, substituindo por prestações de serviço (corvéias) e requisições de gênero (hostilicum). A consequência desta prática, numa sociedade protagonizada por guerreiros, foi o aviltamento da condição de homens livres, que se tornavam uma presa fácil de coação dos que detinham o monopólio das armas.
Um conjunto de fatores explicariam o declínio e a superação da escravidão: por um lado, as conquistas carolíngias, definindo as fronteiras do império, diminuiu a possibilidade do abastecimento de mão-de-obra; por outro lado, a cristianização do Ocidente gerou uma condenação ética da escravização dos povos agora batizados (mesmo que à força). Mas o argumento mais forte quanto à questão foi a própria organização do domínio. O alto custo de manutenção de um contingente que permanecia ocioso fora dos períodos de safra, obrigou os senhores a estabelecer seus escravos em lotes da reserva senhorial, mesmo sem tê-los libertado. Garantindo as condições de reprodução da família escrava, livrava-se também dos gastos com a vigilância e sustento tipicamente de cativeiro, obrigando-os a produzir rendas in natura e trabalho gratuito na reserva a qualquer momento, durante o ano todo. Na prática, à exceção do capitagium, todos os encargos característicos da escravidão desapareceram, havendo uma melhoria na condição social de fato – mas não de direito, pois ele continuava a ser um bem móvel, parte integrante do domínio que, como tal, podia ser vendido ou doado com ele.
O deterioramento da condição social do homem livre e o abrandamento da condição do escravo levram a fusão desses grupos numa só categoria de dependentes, cujos têrmos designativos – colono e pagensi – desapareceriam dos textos a partir do século IX, com os últimos momentos do mundo carolíngio, substituído pelo uso vulgarizado da palavra servus.



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