LIQUIDIFICANDO E PENEIRANDO
HISTÓRIA MEDIEVAL
O MUNDO CAROLÍNGIO
MENDONÇA, Sonia Regina de. As Estruturas na Alta Idade
Média Ocidental. O Mundo Carolíngio. Rio de
Janeiro: Editora Brasiliense, 1985.
Resumido e ilustrado livremente por: Jorge Luiz da Silva Alves,
3º período, UCAM/Santa Cruz (noite).
FORMAS DE PRODUÇÃO
Do século V ao século VIII, a Europa Ocidental atravessou um
processo de regionalização e fragmentação de todo arcabouço do
mundo romano; apenas a Igreja, por sua amálgama entre os mundos
bárbaro (ou transdanubiano) e romano, é que preservou a idéia do
que seria um poder universal num panorama totalmente descentralizado.
Enquanto Roma constituía uma nova forma de produção não
escravista no campo com a ampliação das vilas e a fixação da
população dispersa nos domínios, os bárbaros contribuíram para
acentuar o processo supracitado ao recriar o campesinato livre.
Constituindo aproximadamente cinco por cento da população do
Ocidente clássico, os germanos que produziam em seus alódios¹
tiveram constrangimentos para se pôr sob a proteção de um senhor
dominial. Detentor de uma trecho daquelas terras, equiparavam-se aos
colonos de origem romana e aos escravos; e como não tinham, esses
pequenos proprietários, condições de resistir às grandes glebas
senhoriais, acabavam absorvidos por estas. Lentamente, a gestação
do Feudalismo acontecia na fusão de três células: a grande
propriedade, a reserva comunal e a pequena
exploração (tenência), resultando no domínio.
E, de igual modo, escravos e livres fundiam-se para criar o servo.
O domínio é identificado à grande/enorme
propriedade rural e muitas vezes interpretava-se como sendo o
senhor de um grande número de vilas. Porém, aqui interpretaremos ao
nível de cada vila o pensamento sobre domínio. Algo entre 200 a
2000 hectares, ou daí para cima. O traço característico de um
domínio carolíngio não era tanto a sua dimensão mas a estrutura
de seu funcionamento, a forma como era explorado e a distribuição
interna de suas partes entre o senhor e os camponeses. Dividia-se em
duas partes: a reserva senhorial (mansus indominicatum) e as
tenências camponesas, também chamadas de mansos. A
reserva senhorial consistia na maior e melhor fração da terra
dominial, compreendendo três espaços bem demarcados: terras
cultiváveis, a corte e a terra inculta. As primeiras eram os
campos de exploração direta do proprietário e englobavam também
as vinhas, os prados e os solos silvestres e baldios (importantes
para a pastagem do gado menor e na obtenção de esterco). Esta
reserva, por seu turno, organizava-se ao redor da corte, o centro de
exploração da terra arável. Celeiros, cocheiras, estábulos,
cozinha, gineceus (oficinas artesanais), moinhos e capela compunha os
anexos desta seção. A maior parte da reserva senhorial compunha-se
de bosques, o elemento complementar da economia agrária da
Alta Idade Média, pois dali – a área de caça senhorial – saíam
os couros e peles que substituíam os tecidos e onde se cevava o gado
miúdo.
O conjunto das explorações camponesas constituíam-se nos dois
terços restantes de um domínio, e essas tenências tinham caráter
hereditário entre os seus possuidores. Era necessário tal recurso
distributivo por parte do senhorio porque era preciso fazer frente à
estagnação demográfica existente desde a crise no Império Romano,
que desequilibrava a relação entre a mão-de-obra disponível e a
necessária; e o regime agrário deveria se organizar visando a
disponibilidade imediata de uma quantidade elevada de trabalhadores
capazes de compensar até mesmo os efeitos do esgotamento progressivo
da escravidão. Tornava-se mais vantajoso para o detentor de um
domínio estabelecer o escravo – elemento cada vez mais residual na
realidade embrionária do feudalismo – numa tenência, da qual ele
tiraria seu próprio sustento ou, ainda, requisitar o grande número
de jornadas de trabalho (corvéias) que a reserva exigia dos
camponeses livres possuidores de mansos. Desta forma, a realidade do
regime dominial era de fixar um amplo reservatório de mão-de-obra
para o cultivo do mansus indominicatum, fossem quem fossem.
Embora a definição teórica de tenência significasse uma
unidade de exploração capaz de satisfazer as necessidades de um
casal de cultivadores, na prática o manso apresentava-se sob
diferentes formas dentro de um mesmo domínio; distinguia-se,
basicamente, de acordo com seu estatuto legal, ou seja, o manso livre
do manso servil – isto é, sob a condição jurídica de seus
detentores, homens livres ou escravos. O manso livre, em princípio,
deveria ser maior do que o servil e era gravado com obrigações
menos pesadas para o camponês que o detinha, como por exemplo,
serviços de transporte e prestações ocasionais na reserva
senhorial. O manso servil, ao contrário, impunha para o seu detentor
(um escravo estabelecido) uma série de tarefas mais braçais e de
caráter permanente junto à reserva senhorial. Mas, independente
disso, todos os mansos eram dependentes dum senhor que deles
esperava, anualmente, uma renda fixa ou censo, o símbolo do aluguel
da fração de terra cultivada.
Até o século VIII tanto o camponês livre quanto o escravo
estabelecido eram os emprestadores de suas qualidades às tenências
que cultivavam. Mas, a partir daí, a situação invertera-se:
mansos livres começaram a ser ocupados por escravos e tenências
servis começavam a ser ocupadas por trabalhadores livres, graças
aos senhores que, indistintamente, passaram a impor obrigações
semelhantes para todas as tenências de uma mesma categoria,
desconsiderando a condição jurídica de seu ocupante ou a
capacidade produtiva e dimensões territoriais dos mansos; a
motivação por trás dessa miscelânea é que o número de corvéias
(jornadas de trabalho) aumentou consideravelmente, beneficiando a
fonte dos bens necessários à manutenção tanto do senhor e sua
casa quanto de seus companheiros de prestígio. Com essa inversão,
nivelara-se a população rural, sendo a terra a definidora do
estatuto dos homens: a necessidade do consumo senhorial que
definira os parâmetros da exploração econômica.
A economia desta época caracterizava-se pelo
desperdício: a dinâmica do funcionamento do organismo senhorial
pressupunha grandes áreas de terra e mão-de-obra para a obtenção
de medíocres excedentes de produção. Como estes eram apropriados
pela aristocracia dominante, permitiam-lhe um nível de vida
relativamente elevado, medido pela maior ou menor auto-suficiência
da propriedade rural, transformada num símbolo de honra, prestígio
e poder.
Mas esse domínio clássico ocidental foi tão
clássico assim? Dentro dos limites do Império Carolíngio (onde
nascera e se difundira), o domínio e sua dinâmica numérica e
geográfica encontraram campo fértil para se impor como padrão
econômico; mas em áreas afastadas deste império não chegara
sequer a se enraizar, como na Escandinávia ou nas regiões do Mar do
Norte. Nas províncias germânicas carolíngias, a estrutura dominial
fora menos rígida talvez por conta da dispersão e distância entre
os mansos livres que estes pagavam apenas o censo fixo anual, sem
corvéias. De igual forma, verificara-se na Lombardia, Flandres, e
oeste da Gália. A predominância dos mansos servis distribuídos ao
redor da corte implicou a falência dos serviços devidos pelos
camponeses livres à reserva, uma vez que esta dispunha de
mão-de-obra suficiente. Hoje, parece não haver mais dúvidas de que
o regime dominial não cobrira toda a área rural do Ocidente,
levando muitos medievalistas à conclusão de que o domínio clássico
não configurava-se como regra, e sim, exceção.
SOCIEDADE
Com
a instalação progressiva nas terras romano-ocidentais, os bárbaros
transdanubianos foram responsáveis pela criação de inúmeros
reinos sobre as ruínas políticas do antigo império. Apesar de suas
diversidades, todos tinham por fundamento a noção de fidelidade
pessoal entre o chefe do bando armado (vulgarmente chamado de rei) e
o seu séquito de guerreiros. Essencialmente militar e espontânea, a
solidariedade
germânica era incompatível com a idéia de Estado ou bem público,
e
a concepção de reino fundia-se com o raciocínio bárbaro de que
este era a propriedade particular do soberano, usando-o como bem lhe
aprouvesse.
A solidariedade era garantida pela prestação de um
juramento de fidelidade (ou recomendação) através da qual os
súditos se incorporavam à clientela em torno do rei. Esse vínculo
era de obrigação mútua: aos fiéis (vassalos), cabia a obrigação
do serviço das armas; ao soberano (suserano), o dever de proteger e
auxiliar sua fiel clientela, propiciando-lhe, sobretudo, os meios de
seu sustento. Desenvolvera-se, desde então, a prática da concessão
do benefício, isto é, qualquer bem (mas quase sempre a terra) doado
em recompensa pelos serviços prestados. Assim, o poder militar do
rei saía fortalecido.
Havia uma contradição neste sistema: quanto mais
vassalos pretendesse possuir o soberano, maior deveria ser o seu
patrimônio, em face do oneroso sustento de seus seguidores, daí a
necessidade da realização de novas conquistas. O círculo vicioso
oriundo desta contradição gerava duas consequências: a mudança
da essência do juramento – deslocada da lealdade ao chefe para
o interesse na terra a ser obtida -, e a fragmentação inevitável
do reino; neste último caso, ao ceder as terras, o rei cedia
também parte do seu direito sobre a população local, e, dependendo
de cada beneficiado, a autoridade real era posta em plano secundário
pela autoridade local. O poder público desgastava-se lentamente e,
no Império Carolíngio (onde essa relação suserano-vassálica
tivera maior incidência), isso seria fatal para a manutenção da
unidade territorial a partir do século IX.
No tocante ao trabalho nos primórdios
do Feudalismo (século V ao VIII/IX), consolidara-se em definitivo a
servilização da base estamental. Uma vez que era impossível à
realeza manipular diretamente o campesinato (por obra dessas relações
suserano-vassálicas, só mesmo as tenências nos próprios domínios
reais eram passíveis de controle), a concessão de benefícios
aos vassalos isolava a monarquia em relação ao mundo rural,
reforçando ainda mais o poder dos senhores sobre a população
produtora. Mas foi graças a isso que trabalhadores, livres ou
escravos, tiveram sua condição social nivelada.
Numa análise inicial, parece que a nivelação fora gerada pela
confusão entre os estatutos do homem livre e do escravo. Mas como a
diferença entre eles era claramente estigmatizada pelo pagamento do
capitagium pelo escravo (imposto de obrigação congênita
transmitida por linha materna, de geração em geração),
percebera-se, por fim, que a confusão se dera entre os estatutos
da terra, que se tornara o fundamento de toda a sociedade. A
exploração do produtor direto não se dava mais por sua situação
legal mas pela do manso que cultivava, o que igualou a
cobrança de encargos por igual (livres ou servis), independente do
camponês que a ocupasse.
Veja como se deu esse nivelamento; em princípio, é importante
distinguir que o reforço da dependência camponesa repercutiu de
forma diferente sobre duas categorias de homens livres que
existiam até então, os pagensi (francos) e os
colonos.
Os pagensi ou pequenos proprietários eram os únicos
cultivadores com total liberdade jurídica e econômica em pleno gozo
da propriedade de sua terra e instrumentos de trabalho. Como francos,
podiam ser ouvidos e julgados nos tribunais públicos. E como eram
consanguíneos dos transdanubianos, deviam à realeza as obrigações
elementares de todo cidadão: participação em tribunais públicos
de sua região e a prestação de serviço militar (As
Invasões Bárbaras) . Mas em função da disparidade existente
entre sua condição econômica e sua condição jurídica, que lhes
gerava encargos tão pesados, os pagensi achavam-se em vias de
extinção; mesmo com todo esforço que os governantes carolíngios
fizeram para evitá-lo, a pressão feita pelos grandes proprietários
terminou por agregá-los à servidão nascente.
Os colonos, por seu turno, definiam-se como o homem
juridicamente livre mas não proprietário, frutos da desagregação
do império romano com a fuga dos citadinos para o campo em sua
submissão aos grandes proprietários. Usufrutário permanente de uma
tenência num domínio, sua dependência com relação ao senhor era
total, pois não mais haviam mecanismos legais para protegê-los, e
com isso, a mediação entre eles e o Estado se fazia através do
grande proprietário. Quando homens livres, os colonos também deviam
as obrigações oriundas da antiga cidadania. Só que era comum os
senhores subtraírem os deveres militares de seus colonos,
substituindo por prestações de serviço (corvéias) e
requisições de gênero (hostilicum). A consequência desta
prática, numa sociedade protagonizada por guerreiros, foi o
aviltamento da condição de homens livres, que se tornavam uma presa
fácil de coação dos que detinham o monopólio das armas.
Um conjunto de fatores explicariam o declínio e a superação
da escravidão: por um lado, as conquistas carolíngias,
definindo as fronteiras do império, diminuiu a possibilidade do
abastecimento de mão-de-obra; por outro lado, a cristianização do
Ocidente gerou uma condenação ética da escravização dos povos
agora batizados (mesmo que à força). Mas o argumento mais forte
quanto à questão foi a própria organização do domínio. O
alto custo de manutenção de um contingente que permanecia ocioso
fora dos períodos de safra, obrigou os senhores a estabelecer seus
escravos em lotes da reserva senhorial, mesmo sem tê-los libertado.
Garantindo as condições de reprodução da família escrava,
livrava-se também dos gastos com a vigilância e sustento
tipicamente de cativeiro, obrigando-os a produzir rendas in
natura e trabalho
gratuito na reserva a qualquer momento, durante o ano todo. Na
prática, à exceção do capitagium, todos os encargos
característicos da escravidão desapareceram, havendo uma melhoria
na condição social de fato – mas não de direito, pois ele
continuava a ser um bem móvel, parte integrante do domínio
que, como tal, podia ser vendido ou doado com ele.
O deterioramento da condição social do homem livre e o
abrandamento da condição do escravo levram a fusão desses grupos
numa só categoria de dependentes, cujos têrmos designativos –
colono e pagensi – desapareceriam dos textos a partir
do século IX, com os últimos momentos do mundo carolíngio,
substituído pelo uso vulgarizado da palavra servus.